sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

MITO DO HEROI EM O GUARANI

UNEB- UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DCHT- DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS   
CAMPUS XVI – Irecê.


Mito do Herói em O Guarani
Fabiana Dias*
Magali Santana
Mauro Jakes
Milton Cardoso
Regimária Farias
Sonia Marlene Figueredo
Taciane Santos

 Aurinivea de Assis**
RESUMO
O presente artigo estuda sobre a personagem Peri, no romance O Guarani, de José de Alencar, com o objetivo de desmistificar a idealização do índio brasileiro, sacralizado pelo referido autor. Será abordada a produção romanceada de Alencar quando o mesmo busca uma afirmação da identidade nacional, construindo personagens heroicizados, inspirados pelo modelo romântico europeu, escolhendo o índio como símbolo da raça brasileira. Busca-se analisar esse personagem retratado como herói emblemático por meio de características como força, bravura, bondade, coragem, harmonia constante com a natureza.
Por meio desses subsídios, procura-se entender quem é esse herói erigido por Alencar com a intenção de fundar mitos de origem para o Brasil, resgatando a idéia do “bom selvagem”, visando afirmar uma identidade nacional através dessa imagem perfeita do índio brasileiro. O autor faz calar a voz do indígena, refém de um processo contínuo de desculturação e aculturação, desconsiderando sua identidade, como bem fez Caminha e tantos outros cronistas coloniais.

Palavras-chave: Identidade nacional, sacralização, Mito, Herói
___________________________________
*Discentes do curso de Letras, turma 2.009.2. Universidade do Estado da Bahia – Departamento de Ciências Humanas Tecnológicas – Campus XVI – Irecê-Ba.
**Professor orientador

INTRODUÇÃO
Propõe-se uma análise do referido romance de José de Alencar que, quando jovem, foi um apreciador dos textos dos cronistas coloniais. Desse modo, ao traçar um perfil de índio, considerou alguns aspectos já descritos por Pero de Magalhães Gandavo e por Soares Sousa, por exemplo. Assim, Alencar descreve o ritual antropofágico dos Aimorés seguindo detalhes já apresentados por Gandavo.
O trabalho organiza-se, primeiramente, com a contextualização da obra e o testemunho da preocupação de José de Alencar com o tema nacional expresso na imagem do índio. Traça-se um perfil do Romantismo, destacando a estrutura nacionalista e a edificação mítica e idealizada em torno do indígena e, finalmente, desmistificando essa imagem do herói, dialogando com Alfredo Bosi no texto, “Um Mito Sacrificial: O Indianismo de Alencar”, em Dialética da Colonização.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO AUTOR E A ESCOLHA DO HERÓI

José de Alencar é considerado o mais importante autor romântico brasileiro, suas obras elaboraram, através da valorização dos elementos naturais, um retrato da cultura brasileira, mesclada de idealizações e imagens gloriosas dos povos indígenas.
Inicia seus estudos acadêmicos aos quinze anos, em 1844, matricula-se à Faculdade de Direito de São Paulo, mas é na literatura que excita seu deslumbramento. Começa a publicar seus primeiros textos em algumas revistas estudantis, onde encontra a literatura dos antigos cronistas coloniais, como Gabriel Soares de Sousa e Pero Magalhães Gandavo, frutos da sua inspiração acrescida de detalhes líricos e dramáticos. Inicia sua carreira de romancista, publicando o curto romance Cinco Minutos. Estimulado pelo sucesso do primeiro, logo começa a publicar um segundo romance A Viuvinha. Logo após, publica O Guarani, em 1857.
Começa, então, a crença da utopia das riquezas inesgotáveis e a perfeita conciliação entre o homem e a natureza. A partir daí, o processo de construção do nacionalismo literário adquire outras cores, outros elementos, outras características.
O Guarani significa o indígena brasileiro como observa o próprio Alencar, nas notas ao livro. Peri, protagonista da história, seria não só representante da grande nação tupi-guarani, como também o símbolo do autóctone brasileiro em geral.
A Independência despertou uma busca por afirmação e identidade, apesar de o cenário nacional evidenciar uma situação confusa e um grave atraso, devido à permanência do sistema escravocrata e de um povo manchado pelo sistema colonial.
Na perspectiva de ampliar as possibilidades do futuro e redignificar a sociedade brasileira, os escritores da época, inspirados pelos ideais liberais do Romantismo, buscam na literatura uma forma de superar a fase colonial, valorizando traços do caráter nacional.
É a partir do nacionalismo romântico, que nasce o que se pode chamar de “literatura brasileira”, por um lado, espécie de cópia dos modelos estrangeiros e, por outro, cedendo espaço, abrindo caminhos, para as nossas peculiaridades nacionais.
A construção da identidade nacional brasileira é marcada pela negação da diversidade cultural existente no país, principalmente na constituição da literatura que na sua formação sofreu forte influência do modelo romântico do século XVIII.
É fortalecido, nas obras de José de Alencar, a mitologia do índio como antepassado guerreiro e herói, como símbolo de extrema perfeição, aproximado aos cavalheiros medievais da Idade Média européia. Desta forma, essa visão exótica nega a presença de outras culturas como a negra, tão imprescindível na formação da identidade nacional. Sob esta ótica de considerar uma cultura como universal, Zilá Bernd, em Literatura e Identidade Nacional, considera que o exotismo desvaloriza as experiências, os relacionamentos e a forma de viver de um povo:

[...] O princípio que rege o exotismo é paradoxal:
[...] Com o exotismo, a visão exótica é fundada no paradoxo, pois é “um elogio baseado no desconhecimento”, ou no conhecimento apenas daquilo que o outro tem de imediatamente reconhecível como diferente. (BERND, 2006, P.53)

Essas obras intentam projetar modelos formadores desta nacionalidade, por meio de qualidades e características fortemente supervalorizadas. Nessa perspectiva, Alencar cria a primeira de suas obras de característica indianista, O Guarani.
 O mérito da mitologia alencariana consiste justamente no entendimento do processo histórico ocorrido logo depois da Independência do Brasil. Era de supor que o indígena tornar-se-ia o Herói do Romantismo, por ser, por direito e naturalidade, americano. Mas, não foi isso o que aconteceu. Ao invés de o índio ser tomado com a voz de libertação do jugo português, tornou-se servo da ex-Colônia.

Segundo esse desenho de contrastes, o esperável seria que o índio ocupasse, no imaginário pós-colonial, o lugar que lhe competia, o papel de rebeldia. Era, afinal, o nativo por excelência em face do invasor; o americano, como se chamava, metonimicamente, versus o europeu.(BOSI,P.177)

PERI: HERÓI OU NÃO?

O romance O Guarani é símbolo de um passado idealizado, onde o sentimento nativista e a valorização do índio ganha tons de intrepidez e exagero. O índio é mostrado já aculturado e dominado pelo europeu, a adoração do índio por Ceci demonstra que o indígena na visão de Alencar sentia-se submisso: ... O índio humilde e submisso fitava um olhar profundo de admiração sobre a moça que tinha salvado...” (2009, p.96)
Peri é apresentado em um cenário selvagem, emerge como elemento da natureza, símbolo da cor local. Ao descrever Peri, Alencar ressalta:

“... a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte, mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos...” (2009, p.23)

Ao mesmo tempo em que acentua ao máximo a “cor local”, Alencar idealiza o primitivismo brasileiro, principalmente, através do cenário, do heroísmo e do amor cortês dos romances de cavalaria medievais. Peri idolatra sua senhora, que para ele personifica a imagem de Nossa Senhora, dedicando-se inteiramente a sua Ceci. Esta cena nos remete as cantigas de amor trovadorescas onde o apaixonado vive uma eterna vassalagem amorosa. Conforme os trechos abaixo:
“- Peri é escravo da senhora.” (2009, P.108)
“... sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a  imagem de Nossa Senhora, que ele tinha visto no meio de um combate e havia personificado em Cecília.” (2009, p.110)
“- Escuta, Peri é filho do sol; e renegava o sol se ele queimasse a pele alva de Ceci. Peri ama o vento; e odiava o vento se ele arrancasse um cabelo de ouro de Ceci. Peri gosta de ver o céu; e não levantava a vista, se ele fosse mais azul do que os olhos de Ceci.” (2009, p.123)

Percebe-se nitidamente nas obras de Alencar que os índios se tornam sujeitos a partir da aproximação com o colonizador, a partir da qual o índio expressa seu sentimento de devoção, num processo de aculturação. Não existe uma relação dialética entre o índio e o colonizador. Esse fato é reforçado quando Peri nega a sua cultura de origem e sobrepõem a esta a cultura dos brancos.  Nesse percurso Alencar buscou associar as características naturais do índio ao modelo europeu, deste modo, o índio apresenta superior força física, e conforme as palavras de D. Antonio de Mariz, “Peri é um cavaleiro português no corpo de um selvagem”. (2009, p. 43).
O índio ocupa um lugar secundário nas obras alencarianas, eleito como herói a partir da sua entrega incondicional ao branco, sacrificando-se em favor deste, abandonando sua identidade.
Em O Guarani, primeira obra de característica indianista de Alencar, percebe-se fortemente o desejo da criação de uma identidade nacional, quando o autor idealiza o índio como portador de uma bondade excessiva, considerando-o obediente, gentil, submisso, valente, ágil, fiel e bom selvagem, respeitado pelos inimigos. Peri abandona sua tribo quando descobre que sua mãe fora salva por D. Antonio de Mariz, colocando-se à sua disposição e a seu serviço.
“... D. Antônio volvia os olhos... para o selvagem que surgira, como um benfazejo das florestas brasileiras”. “[...] não sabia o que mais admirar, se a força e heroísmo com que salvara sua filha, se o milagre de agilidade com que se livrara a si próprio da morte[...] conhecia o caráter dos nossos selvagens [...] sabia que fora da guerra e da vingança eram generosos, capazes de uma ação grande, e de um estímulo nobre”.
... Por fim D. Antônio [...]  caminhou para o selvagem e estendeu-lhe a mão com gesto nobre e afável; o índio curvou-se e beijou a mão do fidalgo”. ( 2009,  p.96)

O índio Peri torna-se respeitado, desde o momento em que salva Cecilia de uma avalancha de pedras, filha de d. Antonio de Mariz, recebendo deste a mais alta gratidão.

[...] –“Eu sou um fidalgo português, um branco inimigo de tua raça, conquistador de tua terra; mas tu salvaste minha filha; ofereço-te a minha amizade.” (2009, p. 97).

Recebendo também o afeto desta moça, a menina meiga, pura, de olhos azuis, loira e ingênua, que surge de um ambiente romanticamente selvagem, das matas virgens, sendo a partir de então constantemente vigiada, adorada e enaltecida por Peri que é capaz de gestos simples e grandiosos por sua senhora (era como se referia a Ceci), como buscar-lhe uma flor ou um pássaro, bem como aprisionar uma onça viva para, simplesmente, realizar um dos caprichos da moça, podendo vê-la feliz.

[...] “Peri adorava... o selvagem se mataria, se preciso fosse só para fazer Cecília sorrir. (2009, p.50).
“Para ele essa menina, esse anjo louro, de olhos azuis, representava a divindade na terra; admirá-la, fazê-la sorrir, vê-la feliz, era o seu culto...” (2009, p.55) 

A narrativa começa seus momentos épicos, quando D. Diogo de Mariz (filho de D. Antônio de Mariz), durante uma caçada mata uma indiazinha aimoré. Indignados, os aimorés procuram vingança e tentam assassinar Ceci quando esta tomava banho no rio, mas são surpreendidos por Peri, fiel escudeiro de sua senhora. Seu instinto o faz perceber sinais de presença estranha, e para proteger a vida de Cecília se atira às flechas lançadas pelos aimorés em direção a ela, e num movimento ágil, dispara sua pistola, acertando os índios que caem desfalecidos.

 “[...] Mas Cecília corria perigo, e, portanto não refletiu, não calculou... Ergueu-se então... “De um só movimento tomou à cinta as pistolas que tinha recebido de sua senhora, e despedaçou a cabeça dos selvagens.” (2009, p.61.)

Mesmo ferido, Peri segue uma índia que conseguira fugir, na tentativa de impedi-la de contar o ocorrido à tribo dos aimorés, ele trava uma luta ferrenha entre a vida e a morte, sabendo que deveria viver para continuar a proteger e salvar Ceci, e, sendo filho das florestas, é conhecedor da árvore do bálsamo, a cabuíba, e estende o óleo sobre o ferimento, que estanca o sangue imediatamente: “... Estendeu o óleo sobre a ferida, estancou o sangue e respirou. Estava salvo.” (2009, p.62)

Movidos pela vingança, os aimorés resolvem atacar as habitações de D. Antonio de Mariz, Peri, conhecendo a ferocidade desta tribo que é vista sem pátria, sem religião, que se alimentam de carne humana e vivem como feras, temia o que pudesse suceder à casa de D. Antonio.
Interessante destacar como José de Alencar foi influenciado pelo cronista colonial Gandavo, eles se assemelham inclusive na descrição dos personagens. Esta relação pode ser percebida observando-se o livro Tratado da terra do Brasil. Historia da província Santa Cruz, de Gandavo:


[...] vivem entre os matos como brutos animais [...] Estes  Aymorés são mui feroz e crueis, não se pode com palavras encarecer a dureza desta gente” [...]vivem entre os matos como brutos animaes (GADAVO, 1980 p.34)

... Não se acha nella F, nem L, nem R... porque assi não tem Fé, nem Lei, nem Rei... (GANDAVO, 1680 p.52)
“... Não dão vida a nenhum cativo, todos matão e comem...” (GANDAVO, 1980 p.54).

“ Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz; [...] “armados de grossas clavas e arcos enormes   harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade das feras.” ( 2009, p. 209)


Sendo assim, Peri compreende que a invasão dos aimorés trará ruínas à fortaleza de D. Antonio de Mariz, a luta que irá se travar com certeza aniquilaria a família de Ceci, uma vez que os aimorés eram muito numerosos. De fato a luta é travada e Peri se dando conta que estavam quase destruídos, tenta uma solução de bravura. Dá-se um dos momentos mais “heróicos” da narrativa, Peri revelando sua extrema valentia e devoção se oferece como vítima sacrificial, envenena seu corpo para se entregar como prisioneiro aos aimorés, pois conhecedor do ritual de antropofagia dos aimorés, sabe que morrendo ele, estaria aí a salvação da casa de D. Antonio, após devorarem sua carne intoxicada, não resistindo o organismo dos aimorés, todos morreriam.
A descrição do ritual de antropofagia tecido por José de Alencar segue rigorosamente os detalhes descritos por Gandavo.
“... Quando estes índios tornão alguns contrários, se logo com aquelle ímpeto os não matão, levão-nos vivos pêra suas aldeãs (ou sejão portuguezes ou quaesquer outros índios seus imigos),e tanto que chegão a suas casas lanção huma corda mui grossa ao pescoço do cativo pera que não possa fugir, e armão-lhe huma rede em que durma...(GANDAVO, p.54) E o dia que hão de matar este cativo, pela manhã se alguma ribeira está junto daldea levão-no a banhar nella com grandes cantares e folias,... Aquelle que o hade matar empenna-se primeiro com pennas de papagaio de muitas cores por todo o corpo... Está huma india velha com hum cabaço na mão, assi como elle cae acode muito pressa com elle a meter-lho na cabeça pêra tomar os miollos e o sangue: tudo emfim cozem e assão, e não fica delle cousa que não comam.  Isto he mais por vingança e por ódio que por se fartarem. (GANDAVO, p.55)

“... –Guerreiro goitacá, tu és prisioneiro, tua cabeça pertence ao guerreiro Aimoré; teu corpo aos filhos de sua tribo; tuas entranhas servirão ao banquete da vingança. Tu vais morrer...(2009, p.252) O costume dos selvagens, de não matar na guerra o inimigo e de cativá-lo para servir ao festim da vingança... Segundo as leis tradicionais do povo bárbaro, toda a tribo devia tomar parte no festim: as mulheres moças tocavam apenas na carne do prisioneiro; mas os guerreiros a saboreavam como um manjar delicado, adubado pelo prazer da vingança; e as  velhas com a gula feroz das harpias que se cevam no sangue de suas vitimas. (2009, p.263)
 
Mas como na maioria das narrativas, o herói não pode morrer, Peri, como todos os outros, é salvo por Álvaro (enamorado de Ceci) e, retornando à casa de D. Antonio de Mariz, faz toda a revelação do seu ato heróico na tentativa de salvar a família de Ceci. Peri já sentindo as reações do veneno no seu corpo, lembrou de sobressalto da promessa que fizera a sua senhora, não poderia morrer, viveria para salvá-la. Sendo assim, atravessa a mata à procura da erva que lhe restituiria a vida, segredo que trazia da sua tribo. Com suas habilidades, Peri encontra a erva e com a preparação do sumo desta, é restituído em forças e vigor:
“... Então tratou de recuperar as forças que havia perdido, e tudo quanto a floresta lhe oferecia de saboroso e nutriente serviu a este banquete da vida, em que o selvagem festejava a sua vitória sobre a morte e o veneno.(2009,  p.274)

Os aimorés persistem na luta, D. Antonio de Mariz não vendo como salvar a si e a sua família e aos agregados, reconhece em Peri todas as características de um herói, capaz de desafiar até a morte para salvar sua Ceci, convence Peri a converter-se cristão, pois só assim poderia confiar-lhe a salvação da sua filha.
Peri que até então já abandonara seu povo, seus costumes, suas tradições, devotando sua vida a Ceci, que mal faria tornar-se cristão se o intuito deste ato era salvá-la? Percebe-se o quanto Peri estava disposto a tudo. Torna-se escravo do branco colonizador, doando seu trabalho e até mesmo a sua vida. Abandona totalmente a sua cultura, deixando se batizar, torna-se cristão, recebendo a missão de salvar a filha de D. Mariz que impossibilitado de resistir às investidas dos selvagens, resolve destruir a sua casa para não se render. Peri foge com Ceci para a selva, enquanto o solar se incendeia.

“Peri tinha abandonado tudo pó ela; seu passado, seu futuro, sua ambição, sua vida, sua religião mesmo; tudo era ela, e unicamente ela; não havia, pois, que hesitar.” (2009, p.308)


Uma vez na floresta, onde, “todas as distinções desapareceriam”, Ceci percebe pela primeira vez a beleza de Peri e uma mudança começa a se operar em seu espírito, amava Peri.
           Testemunhas únicas do ocorrido, Peri e Ceci caminham agora por uma natureza revolta em águas, enfrentando a fúria dos elementos da tempestade. Cecília prefere não mais voltar ao Rio de Janeiro, conforme recomendação do seu pai, escolhe ficar com Peri, morando nas selvas. Com a tempestade que aumenta o fluxo das águas, Peri, com força descomunal sobe ao alto de uma palmeira, arrancando-a do solo, improvisando uma canoa para proteger Ceci. O romance termina com a palmeira perdendo-se no horizonte, não sem antes Alencar ter sugerido, nas últimas linhas da narrativa, uma bela união amorosa, semente de onde brotaria mais tarde, a raça brasileira...

“- Sempre... Viveremos juntos como ontem, como hoje, como amanhã. Tu cuidas?... Eu também sou filha desta terra; também me criei no seio desta natureza. Amo este belo país!...”(2009,p.308)
“- Tu viverás!...” (2009, p.314)




PERI: CONTRAPONTO COM A CONTEMPORANEIDADE

O mito histórico é uma forma de o tempo passado ser entendido. Nisto consiste toda a sua validade, que extrapola o universo da imaginação para o qual foi criado, ensinam os anais históricos brasileiros. A elevação do mito do bom selvagem rosseauísta serviu para consolidar os interesses escravistas. Nessa visão, o indígena recebe a bênção de seu senhor e se iguala a ele. Foi o que aconteceu com Peri, no desfecho dramático do romance, com a família de Cecília sendo dizimada pelos Aimorés a mando do padre Loredano.
 Percebe-se que os verdadeiros inimigos dos colonizadores são os Aimorés, a quem Alencar descreve como “bárbaros, horrendos, satânicos, carniceiros, sinistros, horríveis, sedentos de vingança, ferozes, diabólicos” (2009, p.251). Sem voz, em sã e consciente obediência ao seu senhor, Peri é apenas um vassalo. Ele não cumpre a função de herói indígena que se espera, que seria a de lutar contra os desmandos do colonizador. Ele é mais um fraco, que se imola em nome dos poderosos.

Creio que é possível detectar a existência de um complexo sacrifical na mitologia romântica de Alencar.  Comparem-se os desfechos dos seus romances coloniais e indianistas com os destinos de Carolina, a cortesã de As asas de um anjo (remida e punida em A expiação), de Lucíola, no romance homônimo, e de Joana, em Mãe.  São todas obras cujas tramas narrativas ou dramáticas se resolvem pela imolação voluntária dos protagonistas: o índio, a índia, a mulher prostituída, a mãe negra.  A nobreza dos fracos só se conquista pelo sacrifício de suas vidas. (BOSI, 2007, p. 179)

Idealizado aos moldes europeus, alto, forte, belo, Peri está a serviço do colonizador. É neste sentido que o romance deve ser tomado, como uma construção mitológica que recria uma falsa realidade histórica do Brasil, aquela que descreve o índio como um ser dócil, obediente, sincero. Acostumado à liberdade, o índio era justamente o contrário frente ao colonizador. Não obedecia, era dado a fugas, tornava-se taciturno em cativeiro, exatamente como o pássaro na gaiola.
Alencar, ao idealizar Peri como mito, transforma-o de prontidão numa personagem mediadora, que dispensaria juízos de valor na leitura crítica. O que se vê em Peri é uma submissão dos brasileiros aos valores da Colônia e, como tal, pode-se afirmar que é o que ocorre no Brasil de hoje, quando os partidos políticos se unem aos interesses de uma minoria poderosa.
Não há, em qualquer parte do país, um aglomerado de pessoas humildes que não se curvem diante dos políticos, servindo-lhes em troca de favores. Da mesma forma, o brasileiro costuma mitificar aqueles que são tidos como heróis. É o que ocorreu, por exemplo, com o presidente Lula, cuja ascensão ao poder se deveu mais à mitificação de seus ideais do que à consciência democrática.
O processo de colonização no Brasil marca profundamente a vida e a história dos povos indígenas no país, onde sua cultura sempre foi desrespeitada, desvalorizada e seus direitos foram negados. Essa imagem de desrespeito foi fortalecida no período de formação da literatura brasileira quando os autores tentam construir a identidade nacional apresentando o índio como mito ou um bom selvagem quando serve e obedece ao colonizador. Todavia, esta característica está intensamente registrada na obra de José de Alencar O Guarani, dentre outras.
Certamente, imagens como esta de José de Alencar e de outros escritos contribuíram nos diversos processos de marginalização dos povos indígenas no território brasileiro. Pois esta desencadeou uma crença imaginária e idealizada sobre o índio brasileiro, considerado sem fé, sem organização, tido como folclore da cultura e da identidade nacional. A exemplo disto é a comemoração do dia do índio na maioria das escolas brasileiras que o tem como um mito bem distante ou como folclore, quando deveria refletir sobre a cultura indígena, seu jeito de lidar e de preservar a terra e sobre o modo como se organizam para garantir sustentabilidade.
Desde a origem da civilização brasileira que a discriminação dos índios esteve e está relacionada com o desenvolvimento econômico do país. Um modelo pensado pelos latifundiários, fazendeiros, empresas, que sempre se mantiveram no controle da economia e do poder para favorecer pouca gente. Neste sentido, muitos índios foram expulsos para os grandes centros urbanos, longe de sua cultura, do seu jeito de ser e de viver na e com a terra. Muitas tribos foram dizimadas para dar lugar ao projeto de desenvolvimento e de civilização do país, nas construções de barragens, Usinas Hidrelétricas, grandes projetos de irrigação como estão acontecendo com a construção do canal da transposição das águas do Rio São Francisco, que vai atravessar 38 territórios de 32 etnias com uma população de 70 mil indígenas.
Portanto, na contemporaneidade, cada índio das tribos existentes é considerado herói, pois lutam conjuntamente com seus irmãos em favor de sua tribo para garantir a sustentabilidade e a defesa da terra, divergindo da lógica do colonizador.


REFERENCIAS

ALENCAR, José de. O Guarani. Ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009. – (Clássicos da Literatura).

BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 2.ed. Porto Alegre: Ed. Da UFRG, 2003.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo : Companhia das Letras, 1992.

GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil;História da Província Santa Cruz. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1980.

Relatório de Denúncia. Povos indígenas do Nordeste impactados com a transposição do rio São Francisco, 2010, Brasil.




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